sábado, julho 17, 2004

CHAVES, CIDADÃO DO MUNDO

Vou contar pros visitantes uma pequena história. A história de como tudo começou pra mim.
 
Há muitas pessoas que se intitulam revoltadas, contra o sistema, mas nasceram em berço de ouro, nunca tiveram problemas pra ter boas escolas e tudo que quisessem no natal e aniversário, sempre tiveram estabilidade na família...
 
Sempre gostei de assistir Chaves. A estória do menino pobre que morava no barril, numa vila de casas alugadas, com seus vizinhos tão engraçados quanto ele, que sempre se metiam em confusão. E dentre todas as coisas que marcaram minha infância, a frustração de nunca ter tido um óculos do Chaves. Se lembram? Aquele que o suco passava pelos seus olhos, era transparente... Divertido, mas nunca tive um.
E eu nos meus 8 ou 9 anos de idade pouco entendia de causas sociais, de pobreza e riqueza. Até que minha mãe me disse: Filho, eu queria muito te dar um óculos do Chaves, mas não tenho dinheiro pra comprar pra você e pras suas duas irmãs. E o óculos era barato, vendia em qualquer feira.
Nesse dia eu me perguntei: por que outras crianças têm pais que tem grana pra lhes comprar as coisas? No mesmo dia, quando fui ver o Chaves, passou aquele episódio dos desenhos. Onde eles desenham a máquina de uma tecla só, a carta feita com essa máquina, o sanduíche de ovo, o professor Girafales como um amarrado de linguiças com cabeça... e o que me chamou a atenção foi um dos desenhos do Chaves: a folha totalmente em branco. O professor Girafales pergunta a ele o que é aquilo, e ele responde:
"É O MEU CAFÉ DA MANHÃ DE TODAS AS MANHÃS..."
 
Isso mexeu com a minha cabeça de uma forma sem precedentes. Eu ainda tinha o café da manhã, mas até então não pensava muito nisso; mas e as crianças que não o tinham?
Com 9 anos de idade as crianças ficam revoltadas por não poder ter o brinquedo que o coleguinha tem, ou aquela caneta de dez cores com cheiro de frutas; comigo não foi muito diferente, afinal tinha nove anos. Mas com pouco tempo de observação, proporcionada pela abertura da minha mente que os fatos do óculos do Chaves e o café da manhã do Chaves me proporcionaram no mesmo dia, fui percebendo que Chaves não é uma estória, e sim história, com H. Não era a minha história. Mas quanto faltava pra chegar nisso?
Fui lendo coisas que as outras pessoas de 13, 14 anos não liam (eu só fui acessar a internet pela primeira vez em 1998) como páginas de política nos jornais e revistas semanais. Percebi que todos os meios de comunicação em massa diziam a mesma coisa com roupa diferente. Será que algo não estava errado?
Então comecei também a ouvir coisas diferentes. Sons puxados pro hardcore, pro punk rock, que diziam coisas que teoricamente muitos não teriam coragem de dizer em suas letras. Mais tarde fui descobrir também que a criação do movimento punk era uma farsa.
Fiquei perdido? Não! Já era tarde demais e o meu senso crítico já estava devidamente formado. Pude felizmente procurar saber coisas novas, e interpretá-las do meu jeito. Percebi que se atinge o sistema de dentro, e não de fora; então decidi estudar.
E o Chaves continuava passando na TV, com episódios de quase 30 anos atrás, mas sempre atual...
 
Enfim, sem contar detalhes da minha adolescência problemática, o que quero dizer é que, no meu caso, a revolta às vezes não tem cara de revolta; vem embrulhada em uniforme de funcionário da manutenção de uma multinacional e usa óculos. Mas é essa que é a verdadeira; não a do hardcore Estrondo e visual à Galeria do Rock, como vemos muito.
 
Chaves não é só um menino pobre que mora num barril, num cortiço qualquer num subúrbio do México; ele é cada criança pobre, cada criança sem perspectivas, cada projeto de marginal que não teve oportunidade de educação dada pelos pais.

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